Muitos segurados têm enfrentado enormes dificuldades nos seguros que contratam justamente no momento em que mais precisam, isto é, quando acontece o sinistro.
O que é o sinistro?
Sinistro é aquele evento, acontecimento ou acidente que causa danos ou prejuízos a um bem que tem cobertura de um seguro. O exemplo de mais fácil compreensão é aquele em que o segurado bate com o seu veículo e aciona a Seguradora para informar a ocorrência do “SINISTRO”, que é a materialização daquele evento previsto no contrato de seguro.
Pois bem. Assim que a Seguradora é comunicada do sinistro tem-se o início do procedimento de análise do bem “sinistrado”, denominado de regulação ou liquidação do sinistro, onde é realizado pela Seguradora o levantamento de informações daquele acidente a fim de que seja apurada a causa daquele evento, seu real culpado, a extensão dos danos sofridos pelo segurado, dentre outras questões.
É a partir da liquidação do sinistro que, muitas das vezes, começam a surgir o litígio entre a Seguradora e o Segurado.
Indenização securitária
Não são raros os casos em que a Seguradora afirma para o Segurado que a indenização securitária não será paga no valor integral, conforme previsto na apólice do seguro ou no valor equivalente ao prejuízo financeiro sofrido pelo Segurado, sob o argumento de que o Segurado não teria contratado a “cláusula de depreciação”.
Essa “cláusula de depreciação”, de acordo com as Seguradoras, garantiria o direito à indenização integral dos bens sinistrados desconsiderando a depreciação do bem segurado pelo seu tempo de uso, existência e conservação. Caso essa cláusula de depreciação não seja contratada pelo Segurado, argumentam as Seguradoras, o pagamento da indenização securitária deve sofrer uma abatimento ou desconto correspondente ao tempo de uso do bem sinistrado.
Qual o direito do segurado?
Tudo isso seria válido se o Segurado fosse informado pela Seguradora, antes da contratação do seguro, (i.) quanto à possibilidade de inclusão dessa “cláusula de depreciação do bem segurado”, (ii.) das consequências que a não contratação dessa cláusula teria no contrato de seguro e (iii.) recebesse um desconto no valor pago à Seguradora (“prêmio”) proporcional à redução causada à depreciação do bem segurado, caso contrário a Seguradora estará se beneficiando às custas do segurado, na medida em que estará obrigada ao pagamento de uma indenização securitária, necessariamente, inferior ao valor do bem segurado no contrato de seguro, obtendo, assim, enriquecimento indevido em detrimento do segurado, nos termos do artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor:
Artigo 6º. São direitos básicos do consumidor:
(…)
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. (destacamos).
Tais informações devem ser fornecidas pela Seguradora previamente e por escrito, de forma clara, correta, legível, de modo que as cláusulas limitadoras dos direitos do segurado estejam redigidas com destaque (letras grandes, com negrito, letras maiúsculas, etc.) a fim de permitir a sua imediata e fácil compreensão por qualquer pessoa.
Infelizmente, são comuns os casos em que o Segurado toma conhecimento da necessidade de contratação da cláusula de depreciação para o recebimento do valor integral do prejuízo efetivamente sofrido somente quando for receber a indenização securitária (com significativo desconto) da Seguradora.
Atenção às cláusulas contratuais
Para “justificar” o pagamento da indenização com elevado abatimento, as Seguradoras se valem de cláusulas contratuais com redação ambíguas, truncadas ou redigidas com letras miúdas no rodapé da proposta comercial ou da apólice de seguro.
No entanto, se alguma cláusula do contrato de seguro estiver redigida de forma ambígua, “truncada” ou contraditória, a Seguradora terá descumprido o seu dever de agir com transparência e de informar adequadamente o consumidor para este ciente de todos os riscos envolvidos naquela contratação, caso contrário o Segurado terá direito à interpretação dessas cláusulas contratuais de maneira mais favorável para os seus interesses, nos termos dos artigos 47 e 51, incisos I e X, parágrafo primeiro, incisos II e III, do Código de Defesa do Consumidor:
Artigo 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
Artigo 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis
(…)
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
(…)
X – permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;
(…)
§ 1º. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. (destacamos).
Estes direitos do Segurado, previstos no Código de Defesa do Consumidor, estão em harmonia com as regras gerais dos contratos, estabelecidas no Código Civil. Vejamos:
Artigo 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.
Artigo 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio. (destacamos).
Acrescente-se que as cláusulas contratuais que estipulam a renúncia antecipada aos direitos inerentes ao seguro contratado ou restrinjam interesses justos e legítimos do segurado[1], como, por exemplo, a “cláusula de depreciação do bem segurado”, informada pela Seguradora só após a ocorrência do sinistro, violam os princípios da boa-fé objetiva e da transparência nos contratos e o dever de informação prévia, precisa e adequada, colocando o Segurado em posição de exagerada desvantagem junto à Seguradora, quebrando-se, assim, o equilíbrio contratual que deveria vigorar durante toda a relação contratual.
Neste sentido, o comando do artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor é categórico:
Artigo 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. (destacamos).
Sobre a matéria em exame, os Tribunais de Justiça pátrios têm decidido reiteradamente da seguinte forma:
Apelação cível. Ação de cobrança. Seguro de imóvel. Queima do inversor de frequência e de seu software do elevador do Condomínio autor. Necessidade de troca. Quitação parcial. Cláusula de depreciação afastada. Abusividade. O contrato de seguro em questão está submetido ao Código de Defesa do Consumidor, pois envolve típica relação de consumo. Assim, incide, na espécie, o artigo 47 do CDC, que determina a interpretação das cláusulas contratuais de maneira mais favorável ao consumidor. A cláusula de depreciação do bem ofende o princípio da boa-fé objetiva ínsita aos contratos, e coloca a parte autora em manifesta desvantagem, de tal forma que quebra o necessário equilíbrio entre as partes contratantes, razão pela qual se afasta a sua aplicação ao caso em análise. Constitui cláusula abusiva o dispositivo de contrato de seguro de imóvel que permite à seguradora efetuar o pagamento da indenização, na hipótese de sinistro, pelo valor do bem segurado, considerando a sua depreciação quando da ocorrência do dano. Isso porque, no caso, a seguradora paga valor inferior ao quantum segurado na apólice, sobre o qual são calculadas as mensalidades, devendo-se ressaltar que para pagar o preço inferior ao ajustado na avença é necessário a seguradora comprovar que considerou a depreciação do bem segurado no cálculo do valor do prêmio, sob pena de evidente enriquecimento sem causa.
(…)
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Acórdão unânime da 23ª Câmara Cível proferido na Apelação n.º 0004813-86.2017.8.19.0061, em 13.11.2019; Relator: Desembargador Murilo André Kieling Cardona Pereira; destacamos).
Apelação. Indenização. Seguro residencial. Dano causado a elevador em razão de sobrecarga elétrica. Cobertura de dano elétrico contratada. Seguradora que indenizou parcialmente o valor da peça danificada, invocando disposição contratual de dedução do valor de depreciação. Ação de cobrança da diferença do valor ressarcido. Admissibilidade. Interpretação do contrato em contrariedade à finalidade essencial do negócio. Aplicação abusiva da cláusula.
Contrato que distingue o dano estrutural do condomínio, excluindo valor de depreciação nesta hipótese. Caso sub judice em que a natureza do dano causado exige aplicação do critério de dano estrutural, sob pena de absoluta frustração da razão de ser do contrato. Insuficiência de indenização parcial de peça danificada do elevador, o que não permite reposição do dano. Informação inadequada de limitação extrema do conteúdo esperado do contrato. Complementação devida. Recurso provido. (E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Acórdão unânime da 1ª Câmara Cível, proferido na Apelação n.º 1106373-73.2016.8.26.0100, em 17.01.2020 Relator: Desembargador Enéas Costa Garcia; destacamos).
APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO DE IMÓVEL. AÇÃO DE COBRANÇA SECURITÁRIA. COBERTURA SECURITÁRIA POR INCÊNDIO. NEGATIVA DE COBERTURA COM BASE EM CLÁUSULA DE EXCLUSÃO DE RISCO INDEVIDA. ALEGAÇÃO DE QUE O IMÓVEL SEGURADO ESTAVA DESABITADO. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA A HABITAÇÃO PELO SEGURADO. VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO. APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA DEVIDA. INAPLICABILIDADE DA CLÁUSULA DE DEPRECIAÇÃO. MARCO DA CORREÇÃO MONETÁRIA CONSOANTE ESTIPULADO NA SENTENÇA. JUROS DE MORA A CONTAR DA CITAÇÃO.
1. De acordo com o artigo 757, caput, do Código Civil: “pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”. Dessa maneira, os riscos assumidos pelo segurador são exclusivamente sobre o valor do interesse segurado, nos limites fixados na apólice, não se admitindo a interpretação extensiva, nem analógica.
2. Os contratos de seguro devem se submeter às regras constantes na legislação consumerista, para evitar eventual desequilíbrio entre as partes, considerando a hipossuficiência do consumidor em relação ao fornecedor; bem como manter a base do negócio a fim de permitir a continuidade da relação no tempo.
3. No presente caso, constatou-se a negativa da indenização securitária por parte da seguradora, defendendo a requerida que o bem segurado se encontrava desabitado à época do sinistro, o que configuraria risco expressamente excluído da apólice.
4. Contudo, cabia à seguradora requerida, à luz do CDC, comprovar que a parte autora foi devidamente cientificada acerca das disposições gerais do contrato securitário em questão, bem como das cláusulas limitadoras do seu direito que fundou a negativa securitária – ônus, este, do qual não se desincumbiu.
(…)
9. Outrossim, a jurisprudência entende que a cláusula que impõe a aplicação do percentual relativo à depreciação do bem se reveste de abusividade, por colocar o segurado em situação de desvantagem, sendo incompatível com o prêmio repassado e desnaturando o objeto do contrato.
(…)
APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Acórdão unânime da 5ª Câmara Cível proferido na Apelação n.º 0033095-16.2020.8.21.7000, em 15.04.2020; Relatora: Desembargadora Lusmari Fátima Turelly da Silva; destacamos).
Da leitura dos Acórdãos acima reproduzidos se conclui que as Seguradoras devem informar previamente, de forma clara e precisa os potenciais Segurados de todos os riscos que envolvem o contrato de seguro a ser adquirido, dando destaque às cláusulas contratuais que contenham limitações aos direitos do Segurado, permitindo imediata compreensão daquele negócio por qualquer pessoa.
Caso as Seguradoras deixem de agir com transparência, boa-fé, de prestar informações adequadamente aos segurados, esclarecendo claramente os possíveis riscos do negócio contratado e as restrições aos direitos do Segurado, ou apresentem cláusulas contratuais com a redação ambígua e contraditória, será possível questionar tal conduta perante o Poder Judiciário, de modo que o contrato de seguro seja interpretado de maneira mais favorável ao Segurado.
[1] Código Civil, artigo 757: “O segurado, pelo contrato de seguro, se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo à pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”